A Economia do Voto: uma abordagem neo-institucionalista da reforma política

Entendida por muitos como a "reforma das reformas", a reforma política vem, de longa data, arrastando-se pelos corredores e gabinetes do Congresso Nacional.
Não é surpresa: reformar o sistema político não é somente reformar o sistema eleitoral, ainda que aí esteja um bom começo. A reforma, se ampla e profunda como deve ser, significa arriscar um salto no escuro sem rede de proteção para a classe política. Que pode resultar num rearranjo do equilíbrio das forças políticas em cada municipalidade e romper com práticas e tradições arraigadas desde os tempos da República Velha.

A chamada "reforma política" contempla um sem número de micro-reformas, abarcando temas de natureza constitucional e infra-constitucional que se estendem da organização partidária ao processo eleitoral, passando por questões espinhosas como o financiamento de campanhas, a legitimidade dos mandatários e o equilíbrio federativo.

Alternativas e propostas são muitas; os modelos adotados ao redor do globo diversos. Todavia, é interessante notar que o desacordo vigente com relação aos meios não resiste no que diz respeito aos fins. Percebe-se algum grau de consenso em torno de objetivos gerais, a saber:

a) maior institucionalização das regras do jogo político e eleitoral, evitando reformas freqüentes, e por vezes oportunistas da lei eleitoral,
b) reequilíbrio da representação das unidades federativas, de modo a fazer valer o princípio de "um homem, um voto",
c) fortalecimento da legitimidade dos mandatários, através de mecanismos de controle participativo dos eleitores,
d) fortalecimento dos partidos políticos, tanto como instituição fomentadora e organizadoras do debate público, como locus de exercício da participação,
e) maior transparência nas relações candidato-eleitor, partido-candidato, candidato-financiador.
À despeito desta convergência, permanece um importante questionamento: as alterações na regra do jogo levarão à consecução dos objetivos esperados ? As mazelas do atual sistema serão resolvidas por um re-design institucional, ou trata-se de um problema cultural ?

Respondê-lo é tarefa inglória: num sistema de variáveis múltiplas e correlacionadas, a previsão de expectativas, condutas e resutados a serem obtidos por cada agente é extremamente difícil.

O método alternativo que proponho é substituir o imperativo dos resultados "socialmente desejáveis" - frutos de difuso consenso político - por resultados “socialmente eficientes” analisado a luz de um modelo conceitual impregnado de racionalidade econômica. E, em seguida, analisar "ponto-a-ponto" as propostas de reformulação das regras que conformam o jogo político, ceteris paribus e à luz destes novos objetivos, tendo em mente as tendências de comportamento eleitoral que vem sendo verificadas ao longo das últimas duas décadas, tanto no Brasil quanto no exterior. Bem como os imperativos democráticos da participação, representação, legitimidade, legalidade e rotatividade do poder.

Para tanto será necessário permitir-me - tão somente para efeito de modelagem - representação do jogo político por um modelo de mercado constituído por uma oferta formada pelo conjunto de firmas (representadas pelos partidos), organizadas em cooperativas de profissionais funcionalemente especializados (constituída pelos candidatos de um determinado partido) que ofertam produtos diferenciados ( as idéias, reputação, habilidades pessoais e promessas de um candidato); bem como por uma demanda, formada por eleitores detentores do direito de voto.
Assim, uma definição possível dos princípios gerais de uma reforma política segundo uma abordagem econômico-institucional da questão - não por acaso, ligadas ao aumento grau de racionalidade associada às trocas e interação entre os agentes deste "mercado" - seria:

a) redução da assimetria de informação entre os agentes
b) fortalecimento do direitos de propriedade dos agentes
c) garantia à livre entrada de novos agentes
d) desincentivo à adoção de estratégias oportunistas e condutas do tipo "free-rider"
e) incentivos à perfeita percepção da diferenciação de produtos pela demanda
f) discriminação perfeita da demanda (eleitores) pela oferta (partidos)
g) responsabilidade individual dos agentes
h) mitigação de externalidades negativas
i) mitigação de determinadas rigidezes de curto prazo
j) redução de custos de transação e custos de informação

À luz de tais princípios, cabe discutir "ponto-a-ponto" os principais tópicos constituintes da reforma política ora em discussão, destacando o estado atual e a mudança qualitativa pretendida.

1. Fim da coligação partidária nas eleições proporcionais:
A mudança reforça o direito de propriedade do eleitor na medida em que reafirma a natureza personalíssima deste instrumento de mandato. Protege o demandante da substituição de um produto escolhido por outro similar, estabelecendo uma relação unívoca entre a utilidade revelada (na boca da urna) e o efetiva escolha no fechamento da transação (cerimônia de posse). Tal figura desestimula ainda condutas free-riders pelo lado da oferta, os chamados "partidos de aluguel", evitando disparidades com a recente condução à Câmara de Vereadores de São Paulo, de candidato detentor de parcos 2.000 votos. E coaduna-se com o crescimento da tendência de "fulanização" do voto, verificada nas eleições brasileiras da última década.

2. Fixação de cláusula de barreira:
De modo vulgar, o instrumento visa exclusivizar a representação parlamentar na Câmara Federal às agremiações partidárias que obtiverem determinado desempenho eleitoral medido pela percentagem de votos recebidos em todo território nacional. O efeito previsto é o fim ou redução do número de pequenos partidos e a aglutinação de candidatos em torno de partidos organizados nacionalmente. Todavia, tal efeito não é desejável: pois atenta contra o princípio federativo (criando barreiras à entrada de partidos declaradamente regionais como o Partido Autonomista, dos idos dos anos 50 / 60); desequilibra o princípio fundamental da representação ("um homem, um voto") e reduz o acesso às oportunidades de poder. Por outro lado, tal instrumento é ineficaz, uma vez preservada a possibilidade de coligações partidárias nas eleições proporcionais. Que por sua vez proibidas, tornam-no perfeitamente dispensável.

3. Adoção do voto distrital misto:
O voto distrital atende ao princípio da subsidiariedade na medida em que as agendas passam a ser pautadas por temas afetos à comunidade local. Reduz custos de transação incorridos pelas firmas na promoção de seus produtos, uma vez que promove uma discriminação mais perfeita da demanda de modo direto (por região geográfica) e indireto (por perfil de renda). Combinado com o mandato imperativo reduz a assimetria de informação entre agentes no processo de escolha e incrementa o grau de transparência do contrato, uma vez que o representante não representa interesses difusos, mas interesses consolidados numa agenda objetiva de providências previamente pactuada entre partes devidamente discriminadas.
Contemplando ainda a possibilidade do "recall", tal instituto incentiva a responsabilidade individual dos agentes (eleitores e candidatos), pois tanto o eleitor é chamado à participação contínua no processo político acompanhando as ações de seu representante, quanto o profissional da firma está obrigado à entrega dos produtos contratados pela comunidade e responsabilizado pelo patrocínio de seus interesses na esfera federal e estadual.

O instrumento do recall do representante pelos representados é a forma mais civilizada de afirmação do direito de rebelião e insurreição do cidadão contra o Estado, no sentido lockeano expresso no Two Treatises of Government. É oportuno destacar que nos mapas eleitorais dos últimos pleitos nacionais temos podido observar um elevado grau de distritalismo na votação dos candidatos.

4. Fidelidade partidária:
Á despeito de trazer relativa rigidez para o jogo político, a fidelidade é salutar e profilática, desde que em ambiente institucional marcado pelo voto distrital e/ou pelo mandato imperativo. Desestimula o oportunismo dos agentes, reduz a assimetria de informação para o demandante, incrementa a responsabilidade da firma na garantia da qualidade dos serviços profissionais oferecidos, cria incentivos às firmas no investimento na formação de novos quadros profissionais; e promove a especialização das firmas tornando-as mais facilmente discrimináveis pelos eleitores demandantes dentro do espectro ideológico.
É fato que certa quantidade de areia deliberadamente inserida nas engrenagens do sistema político representa alguma rigidez de curto prazo, e representa, no lado da oferta, certa restrição à livre escolha da firma pelo profissional, tolhendo a liberdade do representante. Todavia, tal liberdade é heterônoma, uma vez que seu mandato lhe é concedido pelo eleitor. Uma possível solução reside na concessão de autonomia relativa ao representante (passível de autorização, específica e temporária) permitindo-lhe a infidelidade após consulta às bases distritais.

5. Adoção do voto facultativo:
Trata-se de uma questão de princípio: somente deveria caber o Estado o "enforcement" de uma obrigação ou dever à um ente privado, caso sua conduta em sentido contrário resulte na imposição de custos sociais à coletividade ou de custos privados à terceiros. A decisão soberana do indivíduo de manifestar-se ou não no âmbito do processo político somente tem custos privados, não cabendo qualquer tipo de restrição, uma vez que não há externalidades negativas sobre terceiros, e os problemas de direito de propriedade difuso, condutas tipo free-rider e oportunismo não se colocam

De modo geral, as posições contrárias à tal instituto apóiam-se no argumento da legitimidade, baseada na aquiescência da maioria e manifesta preocupação de que "somente os interessados no jogo político iriam votar" identificando aí um paradoxo. Todavia, a legitimidade de um contrato tem menos a ver com a aquiescência de uma maioria à termos difusos, do que com a firme e livre (e por isso facultativa....) aquiescência individual das partes à termos específicos.
Tal instituto introduziria ainda uma externalidade positiva: o desincentivo ao chamado "voto de cabresto" ou à compra de votos; uma vez que estariam criada maiores assimetrias e custos de informação na identificação de eleitores efetivos pelo corruptores.

6. Reequilíbrio da Proporcionalidade:
Atende ao requisito do equilíbrio federativo e o princípio democrático de um homem, um voto reequilibrando a proporcionalidade de cadeiras a serem ocupadas por representantes dos Estados mais populosos. A discrepância existente, faz com que o voto de um eleitor acreano possa vir a valer 4.000 vezes mais do que o de um eleitor paulista.
À despeito do sistema bicameral brasileiro encontrar-se constituído por um Senado Federal onde as unidades federativas já estão representadas de modo paritário, o equilíbrio federativo na Câmara dos Deputados também é fundamental, pois o rito processual do legislativo contempla a manifestação daquela Casa em questões que afetam diretamente o pacto federativo.

7. Financiamento de campanhas exclusivamente público:
O objetivo do instituto é evitar esquemas fraudulentos de financiamento, colocando todo o processo sob a responsabilidade do Estado, e, pretensamente, garantir igualdade de condições para as firmas na promoção de seus profissionais e produtos. Wishfull thinking: dinheiro público financiando falsas esperanças.
Por princípio, o instituto fere o direito individual do demandante de gastar seu dinheiro onde quiser e da forma que quiser, desde que dentro da legalidade. Por princípio, qualquer indivíduo deve ter preservado o direito de ser financiador, seja na condição de pessoa física ou pessoa jurídica.
Atentemos primeiro para o problema dos esquemas fraudulentos de financiamento: alguma discriminação favorável às pessoas jurídicas - impedindo a doação de pessoas físicas e apertando a fiscalização sobre as empresas - poderia trazer mais transparência e reduzir custos de transação no processo de fiscalização. Ainda assim, não vejo como tal medida desincentivaria a fraude ou a formação do chamado "caixa 2" nas campanhas.

Sejamos francos: a instituição do exclusivo financiamento público - tornando ilegal o financiamento privado - não acaba com o chamado "caixa 2", pela simples razão que este já é um procedimento ilegal. A teoria mostra e a experiência confirmar que um novo instituto legal não elimina antigas ilegalidades.

Ademais, o chamado "caixa 2" não se destina ao financiamento das necessidades operacionais de campanha. Sua função é selar compromissos entre potenciais agentes públicos e interesses privados, garantindo contratos futuros. Assim, as propostas de fixação de limites legais por empresa, financiamento misto e tantas outras são não mais que tiros n' água, caso o objetivo central seja dar tratos à ilegalidade.

A relação entre partidos e financiadores configura-se segundo o interesse e inclinação ao risco do corruptor e de acordo com a conduta e necessidade do corrompido. A fiscalização da modalidade em que são doados recursos diz respeito ao Fisco. O que se promete para obtê-los diz respeito ao Código Penal. E afinal, porque os partidos políticos tem de ter tratamento diferente das demais empresas ou organizações da sociedade civil ? Neste peculiar, nenhum redesign institucional pode prometer melhorias.

Sobra-nos a ingênua intenção de garantir igualdade de competição através da igualdade de condições de financiamento. É preciso reconhecer que a competição por recursos já é um tipo de competição eleitoral prévia, e que determinados partidos – para o bem ou para o mal - são mais eficazes na articulação de interesses conflitantes; bem como mais abertos a representação de segmentos distintos; obtendo portanto melhores resultados no levantamento de fundos de campanha.

O que há de se garantir pela via institucional é a igualdade de acesso dos potenciais financiadores aos mecanismos de financiamento. Aí o financiamento público pode ajudar.

Uma interessante solução, apresentada pelo Prof. Bruce Ackerman, da Universidade de Harvard, é o financiamento público através do sistema de voucher. Trata-se de instrumento para doação mínima voluntária, aberto às pessoas físicas e jurídicas. Os vouchers garantem a universalização do acesso ao financiamento a todos os cidadãos, garantindo-lhes a decisão individual de destinar sua cota de recursos a seu candidato ou partido de preferência, e evitando que a burocracia do Estado seja captura por interesses privados na alocação dos recursos públicos destinados para aquele fim.

No que diz respeito à tendências de longo prazo, o financiamento privado deve perder o fôlego, levando consigo parte dos problemas relativos à ilegalidade. Tal fato já foi notado pelos candidatos às últimas eleições municipais que manifestaram seu desânimo com o empobrecimento das campanhas. É de se esperar: a medida que avança seu processo de reforma, o Estado brasileiro vai perdendo a capacidade de influenciar diretamente o processo produtivo e as relações econômicas, tornando o esforço de captura de parlamentares e burocratas por interesses privados desinteressante.

Por fim, uma última sugestão: em nome da transparência, que tal seria transformar as agremiações partidárias em fundações para que pudessem ser auditados pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Sejam quais forem as alterações aprovadas nestes institutos, há que se conquistar certa estabilidade no sistema eleitoral brasileiro e na legislação a ele pertinente. Vale lembrar as descontinuadas tradições e diferentes marcos legais que experimentamos durante as quatro últimas décadas de nossa historia recente: parlamentarismo, bipartidarismo, voto vinculado, voto de legenda etc...

Em nome da estabilidade das regras do jogo e do Estado de Direito, partidos, candidatos e eleitores agradecem.

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