O massacre do noviço

Não sem motivo, toda vez que vêm a público a intenção do Governo Federal de nomear um político profissional para uma função governamental de caráter técnico, a chiadeira da imprensa e dos formadores de opinião avoluma-se. Os prejuízos potenciais provenientes de tais nomeações em termos de uso inadequado dos recursos públicos, fisiologismo e clientelismo desaconselham-nas como práticas de boa governança. E justificam o rechaço.

Por este motivo, causa rematado espanto que o barulho persita quando dá-se o exato inverso. Refiro-me aos apupos oferecidos por parte da grande imprensa brasileira ao convite estendido ao Prof. Roberto Mangabeira Unger para assumir a Secretaria Especial para Ações de Longo Prazo da Presidência da República, o chamado “Ministério do Futuro” (ou SEALOPRA, para os críticos).

Justificado na potencial politização do IPEA, na desconfiança acerca de quão republicanos são os propósitos que movem Mangabeira à aceitar o cargo e nas vinculações políticas algo contraditórias que Unger colecionou ao longo da vida, promove-se o massacre público do futuro titular da pasta do Futuro. Tudo de modo a produzir, pela execração seletiva de seu passado, outro Ministro que foi, sem nunca ter sido. Mais um.

Desnecessário dizer, mas Mangabeira não é “mais um”. Professor titular mais jovem que a Universidade de Harvard já conheceu, Unger é um intelectual de renome internacional nas disciplinas que escolheu: a filosofia política e a teoria social. Seus textos que avançam sobre outros domínios – cobrindo desde políticas públicas ao comércio internacional – têm sua importância e originalidade reconhecidas por seus pares no mundo acadêmico americano. Em companhia destes, oferece semestralmente cursos interdisciplinares disputadíssimos pelos estudantes de pós-graduação da Universidade, sempre privilegiando abordagens não tradicionais dos problemas de nosso tempo.

Longe de misterioso, seu pensamento sobre o Brasil está organizado em uma obra de poucos livros e inúmeros artigos (diga-se de passagem, como convém...). Boa parte do material está disponível, em português, através de site pessoal na Internet - confeccionado nas cores verde e amarela. Seus críticos à direita e à esquerda reconhecem-lhe as idéias instigantes e originais. Seus detratores julgam-no algo obscuro, porque não conseguem lê-lo a contento. Entender o que diz Unger requer, por vezes, alguma disciplina.

De leitura densa, ainda que breve, seu recente livro The Self Awakened – Pragmatism Unbound (Harvard University Press, 2007, ainda sem tradução em português) é uma crítica original contra o pragmatismo imediatista da vida prática contemporânea, em favor de visões e ações estruturantes de mais longo prazo – quer tomadas na esfera da vida privada cotidiana, quer na esfera da estratégia de desenvolvimento nacional. Nele, Mangabeira revela que tipo projeto o anima ao deixar a bucólica Cambridge em direção a uma aborrecida Brasília: em suas próprias palavras, volta à Pátria “para servir ao Governo; mas, antes de tudo, para servir à Nação”.

Contrariamente à imagem de intelectual oportunista e operador espertalhão que lhe foi atribuída, Unger é um noviço no campo da política prática. Sua aproximação com Leonel Brizola na década de 90 e sua participação na coordenação da campanha do então presidenciável Ciro Gomes em 2002, nem de longe o credenciam com a raposa política republicana a ser instalada nos galinheiros do NAE e do IPEA, órgãos que constituirão a espinha dorsal do futuro Ministério. Ainda que lhe fosse revelada a pele de cordeiro, não haveria o que rapinar. Em matéria de ovos e galinhas parideiras, a estrutura da Secretaria de Unger não está entre as mais vistosas da Esplanada: o cobertor orçamentário do IPEA é curto e a estrutura atual do NAE é bastante enxuta.

Seus críticos são os primeiros a marcar-lhe como ingênuo político. O balão de ensaio de sua candidatura à Presidência pelo nanico PHS em 2005 e a malfadada pré-candidatura à Prefeitura do Rio de Janeiro pelo PPS fazem hoje parte do folclore político local. Serviram-lhe mais como tentativas de influir no debate público desde palanques situados em terras brasileiras, do que como projeto concreto e viável de poder.

Poder-se-ia argumentar que Mangabeira é uma figura estranha ao Brasil. De fato, talvez o seja. Ao deixar para trás sua confortável sala com vista para um amplo jardim na Universidade de Harvard e um salário de fazer inveja a executivo de multinacional faz aquilo que seria impensável nos trópicos: apresenta-nos um republicanismo situado para além das conveniências pecuniárias pessoais. Seu sotaque carregado vive à despertar nos tolos um anti-americanismo latente, mesmo que a maior parte de sua obra ofereça uma visão crítica da sociedade americana e de seu atual Governo.

Não está sozinho: quando indicado para presidir o Banco Central, o então “banqueiro” Armínio Fraga submeteu-se ao mesmo calvário, portando credenciais acadêmicas similares e condições financeiras ainda mais vistosas. Fraga não escapou do massacre, ainda que as pedras atiradas viessem do outro lado do espectro ideológico. Fez um trabalho exemplar e entrou para os anais da República como o “senhor estabilidade”. Porque não esperar o mesmo de Unger ?

Finalmente, no que diz respeito à sua conduta pública como intelectual, quando foi chamado à luz dos holofotes para explicar suas contradições, fê-lo de forma transparente. Expressou seu desencantamento com o Governo Lula em 2005 à sua maneira de sempre: vigorosa e algo iconoclasta. Passado o tempo, permitiu-se a revisão. Mudou de idéia; e o fez de público. Ao aceitar o convite para conduzir a “Sealopra”, não revela oportunismo algum: opta pela ética da responsabilidade, e não pela da convicção, coisa que Max Weber julgava natural aos intelectuais inclinados à ação política.

Não é preciso ser de esquerda para reconhecer em Mangabeira o ânimo redobrado em colaborar na construção de país com um futuro diferente de seu presente. Também não é preciso partilhar suas convicções para respeitar-lhe a trajetória intelectual, ainda que sua obra seja de leitura um tanto mais difícil que a média. Não sou de esquerda, nem Unger é Paulo Coelho.

Não é correto desconfiar de seu entusiasmo por estar à frente de um Ministério sem estofo, sem obras e sem orçamento quando nos parece sem propósito escolher viver em um quarto de hotel em Brasília e abandonar uma demanda judicial milionária – incerta, diga-se – somente porque escapa-nos o sentido que Unger atribui à missão. Ainda que “sagrado” pareça ser um exagero semântico.

Não é justo prejulgar sua conduta, medindo-lhe pela régua dos políticos tradicionais, somente porque seus caminhos errantes no campo da política – Brizola, Ciro, Caetano Veloso – resultaram em não mais que ensaios sem maiores conseqüências. Unger não construiu sua reputação neste jogo. Ao contrário de muitos outros intelectuais que flertaram com o mundo político, não a perdeu ali.

Enfim, não é razoável tratá-lo à bordoadas somente porque sempre persistirá um certo estranhamento quanto ao seu hábito de escrever de pé.

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